29/07/2009

O Jardineiro Fiel


Mil sonhos de amores perfumam as flores do jardim. Um jardineiro derrama descuidado gotículas sobre pétalas delicadas. O sol é suave, a brisa mansa. O chão fofo e bem cuidado exibe a cor saudável de um rosto bem alimentado. Minhocas gulosas mergulham na terra fofa. Um grilo salta de uma folha a outra. Tudo é calma, suave balanço de harmonia.

Mas eis que tudo começa a mudar. Um grito, um gemido. Um estalido de dor. A figura de um homem de olhos esbugalhados descortina-se na escada. Um homem alto, magro, cabelos ouriçados e olhos a saltarem das órbitas. O homem, parado no limiar da porta, parece exausto. Sua expressão é de assombro. Atrás dele gritos de mulheres a sua procura tecem uma estranha melodia atrófica.


O homem, parado, estende a mão para as flores do jardim. Nem uma palavra escapa de seus lábios. Mas uma voz rouca, um sussurro a muito reprimido, é visto jorrando de seus olhos. O homem se atira de joelhos à terra fofa e agarra a flor roxa recém regada que lhe está mais próxima.


As mulheres chegam à porta. São três. Aparentemente a mãe, uma filha moça e uma mais nova. Todas olham com admiração a cena. Nenhuma delas quer mais gritar. Em seus olhos, espelhos do sofrimento, pode-se ler a história que passou:


Sr. Luis era um jovem médico. Jovem se entregou à vocação. Conheceu dona Ilda quando ainda cursava a faculdade. Donos de uma paixão fulminante, se entregaram ao casamento. Tudo corria bem. Nascera a primeira filha, Luana. Fogos de júbilo ecoaram pela casa inteira. Uma grande festa com muitos convidados percorreu a casa do doutor.


Um dia, porém, a casa amanheceu mais escura. Luana já tinha cinco anos. Médicos da cidade vizinha movimentaram-se na casa do amigo doutor. Ele estava dormindo! Sim, dormindo. Não estava morto. Era um sono suave, nostálgico.


--Tripanossomíase Africana. A doença do sono. E ela pode levar anos. Poderia jamais acordar ou simplesmente acordar amanhã -- disse um Senhor Doutor.


No dia seguinte Ilda estava sentada à beira da cama do marido, na mesma hora que ele sempre acordava. Ela havia preparado um belo café da manhã, o mais lindo que conseguira. Esperava que ele despertasse e arrancasse a todos do pesadelo. Jamais contaria ao marido o ocorrido, seria como se aquilo não acontecera. Mas ele não acordou. No dia seguinte a esse, a cena se repediu. E no outro dia, e no outro, e em mais outro, até que os anos passassem. As meninas acostumaram a ir ao quarto do sono se despedir para a escola. A mãe sempre estava lá, e esperava. Os anos passaram e um dia, quando a esperança já estava de malas prontas para partir, quando Ilda não podia mais contar o número de fios sem cor de sua cabeça, ele acordou.


Nesse dia, que começou com os gritos das mulheres e o jardineiro a regar o jardim, houve uma grande festa. Outra vez toda a cidade desfilou na casa do Doutor. O Jardineiro foi o único a não comparecer. Como em um despertar rotineiro, o doutor contou o infinito de sonhos e pesadelos por que passou. Os médicos, na sala, riam das histórias e diziam querer pesquisar. A mulher olhava calada, abraçada à filha mais nova, três aninhos apenas. Luana, a mais velha, já tinha 15. Dez anos havia se passado.
Naquela noite, todos foram dormir tarde e, quase sem acreditar, Ilda foi ao quarto do sono desejar boa noite ao marido desperto. Não dormiriam juntos naquela noite, ainda havia muito por conversar. Ele dormiu. Pela manhã a casa cheirava a café. Ilda foi acordá-lo. Ele ainda dormia. O Doutor nunca mais voltou a acordar. Dormiu nos anos que alcançaram o casamento da filha, a morte dos amigos, do jardineiro e da mulher também. Dizem que, pouco antes de seu suspiro final, seus olhos se abriram e deram com o da menina mais nova, agora bem mais velha. Era quem cuidava dele, a filha do jardineiro. Ninguém nunca soube o que disseram...



AUTOR: Sávio Damato

4 comentários:

Anônimo disse...

muito bom.
adoro seus contos..
sou teu fã.
rsrsrs

A Ficção do Real disse...

Muito obrigado, Mélker.
A casa é sua.

Anônimo disse...

Mano, eh seguinte...

fiz uma indicação do seu blog no meu...

mas como teu blog nao tem foto de capa, eu coloquei a sua foto :)

se tiver algum problema, me diga que tiro de imediato...

blz?

A Ficção do Real disse...

Problema algum.
Fico muito grato.