12/07/2009

Baudelairiando


Dezembro. Estou à mesa de um bar.

O tempo transborda e já posso sentir as partículas ácidas inundarem em corrente meu corpo e minha alma.

Sorrio. O amigo ao meu lado também sorri. Compartilhamos a mesma sensação. O corpo se torna mais sensível... Em breve os músculos do rosto pedirão um minuto de paz, doloridos de tantas risadas que são obrigados a suportar. Se é verdade que rir é o melhor remédio, nesta noite estaremos nos curando de todos os males. Mesmo daqueles que não nos pertencem.

Outro bar... Mais risos... Uma euforia vibrante, forçada a se conter, compactada no frasco pequeno do corpo. Irradia...

Meus olhos percorrem outras mesas. Os ouvidos recolhem sons de conversas alheias e das nossas próprias. Observo. Faço anotações mentais.
Uma mulher me olha. Está acompanhada. Retribuo o olhar, provoco, invado seus pensamentos. Não sei se tenho direito de abalar os pensamentos alheios... Mas já é tarde! Ela pensa no olhar oferecido. O homem ao seu lado é velho, barrigudo, de uma barbicha ridícula. Mas há status. Ele representa conforto. Ela, beleza. Sente vontade de mim... Flerta... Agora já invade meus pensamentos também...

Tudo se dissolve em uma nova onda de frenesi que invade meu corpo, chama à loucura, grita-nos a loucura de seu berço insano.

Minhas faces estão molhadas... Lágrimas dos muitos risos. Motivo? Não há. Rimos como que compelidos... Celebramos a vida. Como é bom rir, sorrir, gargalhar até as lágrimas.
É um bom e raro amigo este que me acompanha. Mas estou sozinho. Não de companhia, mas de mulheres. Ele fala das suas... Eu penso nas que agora não tenho. Ao longo da semana, sei, algumas passarão por minha cama. Sei também, muito provavelmente, nenhuma trará sentimento mais intenso que o gozo. Gozemos então! Talvez o amor nunca venha. Talvez seja apenas um estado de espírito, um querer acreditar. Querer amar é amar? Amo, mas hoje não há mulher para beijar. Abraço o amigo. É um amigo, dizemos um ao outro. O sentimento é mútuo e verdadeiro.

Passamos tanto tempo imersos Nonada cotidiano que não vemos o óbvio da vida que nos cerca. A droga doce da loucura nos atira à improdutividade. Não, não se deve viver cotidianamente assim, é certo. No entanto, é preciso viver também assim. Na loucura. É o caminho necessário para que os pensamentos não se acanhem, para que o mundo não nos amarre, amasse, reprima, modele. Já basta o peso da história do mundo que somos obrigados a carregar. Já basta. Já basta que tenhamos de ser cartesianos ao criticar Descartes. Já basta!

É do fundo do poço de onde se vê brilhar a mais bela luz. Talvez seja aqui no bar, bebendo, sentindo o efeito doce do ácido transbordando por corpo e alma, talvez seja aqui o fundo do poço.
Também aqui está sentando o velho Baudelaire. E bebe conosco... E nos diz:

“... É hora de se embriagar!
Para não serdes os martirizados escravos do Tempo,
embriagai-vos;
embriagai-vos sem tréguas!
De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha. ”.


– Onde está a poesia? – pergunta o amigo.
Penso, respostas banais me escapam. Ao longo da noite a pergunta se repete.
– Onde está a poesia?
Num momento a senti comigo. Enfim soube responder:
– Onde está a poesia? – Ele insiste.
– Está sentada aqui bebendo conosco. Está também a ser bebida por nós.
– Está em todo lugar – completa o amigo, feliz por enfim ter chegado à resposta. Ele já sabia.Na certa se perguntara muitas vezes antes de dividir a questão comigo.

Ainda estou no bar. Em outro. O dia já amanhece. O efeito da loucura se foi. Ficou a lembrança da sensação. Estou a escrever. Faço anotações mentais a todo o momento. O mundo nos olha dos olhos das pessoas. Dolorosos olhares que desejam nosso súbito desaparecimento. Quanta poesia há nessas pessoas?... Quanta poesia há em nós?... Nas reticências de cada um...
O que no princípio era carne, agora se faz verbo. Poesia! Devaneio.

Agora vou me deitar. Deixar o corpo naufragar em sonhos. O sono será a ponte de volta à realidade cotidiana. Mas a poesia não mais me escapará!

O sonhador se faz sonho,
O poeta poesia.
E a poesia...
Estado de alma
Transcendente em si mesmo
Que busca o céu e o inferno
Inerente a todas as coisas.

Boa noite!

AUTOR: Sávio Damato

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