15/04/2009

O QUARTO DO SONO

Mil sonhos de amores perfumam as flores do jardim. Um jardineiro derrama descuidado gotículas sobre pétalas delicadas. O sol é suave, a brisa mansa. O chão fofo e bem cuidado exibe a cor saudável de um rosto bem alimentado. Minhocas gulosas mergulham na terra fofa. Um grilo salta de uma folha a outra. Tudo é calma, suave balanço de harmonia.

Mas eis que tudo começa a mudar. Um grito, um gemido. Um estalido de dor. A figura de um homem de olhos esbugalhados descortina-se na escada. Um homem alto, magro, cabelos ouriçados e olhos a saltarem das órbitas. O homem, parado no limiar da porta, parece exausto. Sua expressão é de assombro. Atrás dele gritos de mulheres a sua procura tecem uma estranha melodia atrófica.

O homem, parado, estende a mão para as flores do jardim. Nem uma palavra escapa de seus lábios. Mas uma voz rouca, um sussurro a muito reprimido, é visto jorrando de seus olhos. O homem se atira de joelhos à terra fofa e agarra a flor roxa recém regada que lhe está mais próxima.

As mulheres chegam à porta. São três. Aparentemente a mãe, uma filha moça e uma mais nova. Todas olham com admiração a cena. Nenhuma delas quer mais gritar. Em seus olhos, espelhos do sofrimento, pode-se ler a história que passou:

Sr. Luis era um jovem médico. Jovem se entregou à vocação. Conheceu dona Ilda quando ainda cursava a faculdade. Donos de uma paixão fulminante, se entregaram ao casamento. Tudo corria bem. Nascera a primeira filha, Luana. Fogos de júbilo ecoaram pela casa inteira. Uma grande festa com muitos convidados percorreu a casa do doutor.

Um dia, porém, a casa amanheceu mais escura. Luana já tinha cinco anos. Médicos da cidade vizinha movimentaram-se na casa do amigo doutor. Ele estava dormindo! Sim, dormindo. Não estava morto. Era um sono suave, nostálgico.

--Tripanossomíase Africana. A doença do sono. E ela pode levar anos. Poderia jamais acordar ou simplesmente acordar amanhã -- disse um Senhor Doutor.

No dia seguinte Ilda estava sentada à beira da cama do marido, na mesma hora que ele sempre acordava. Ela havia preparado um belo café da manhã, o mais lindo que conseguira. Esperava que ele despertasse e arrancasse a todos do pesadelo. Jamais contaria ao marido o ocorrido, seria como se aquilo não acontecera. Mas ele não acordou. No dia seguinte a esse, a cena se repediu. E no outro dia, e no outro, e em mais outro, até que os anos passassem. As meninas acostumaram a ir ao quarto do sono se despedir para a escola. A mãe sempre estava lá, e esperava. Os anos passaram e um dia, quando a esperança já estava de malas prontas para partir, quando Ilda não podia mais contar o número de fios sem cor de sua cabeça, ele acordou.

Nesse dia, que começou com os gritos das mulheres e o jardineiro a regar o jardim, houve uma grande festa. Outra vez toda a cidade desfilou na casa do Doutor. O Jardineiro foi o único a não comparecer. Como em um despertar rotineiro, o doutor contou o infinito de sonhos e pesadelos por que passou. Os médicos, na sala, riam das histórias e diziam querer pesquisar. A mulher olhava calada, abraçada à filha mais nova, três aninhos apenas. Luana, a mais velha, já tinha 15. Dez anos havia se passado.
Naquela noite, todos foram dormir tarde e, quase sem acreditar, Ilda foi ao quarto do sono desejar boa noite ao marido desperto. Não dormiriam juntos naquela noite, ainda havia muito por conversar. Ele dormiu. Pela manhã a casa cheirava a café. Ilda foi acordá-lo. Ele ainda dormia. O Doutor nunca mais voltou a acordar. Dormiu nos anos que alcançaram o casamento da filha, a morte dos amigos, do jardineiro e da mulher também. Dizem que, pouco antes de seu suspiro final, seus olhos se abriram e deram com o da menina mais nova, agora bem mais velha. Era quem cuidava dele, a filha do jardineiro. Ninguém nunca soube o que disseram...


AUTOR: Sávio Damato

ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA

Zilda acordara bem cedo na manhã daquela quinta-feira. Estava um dia nublado, um leve frio. Perfeito para permanecer debaixo das cobertas. Desligou o despertador e olhou para o relógio de pulso colocado sobre o criado, ao lado da cama. Sorriu. Aquela era uma relíquia de família, sua avó repassara-o para sua mãe e agora era de Zilda. Quantas boas lembranças um objeto tão simples pode nos trazer, pensava ela, ainda admirando o relógio. Cinco minutos se passaram. Zilda espreguiçou novamente. Hora de levantar. Lavou o rosto, pegou o relógio e foi para a cozinha tomar café. Como de costume, preparou pão, queijo, presunto e ovo frito, acompanhados de suco de laranja sem açúcar.

– Bom dia, minha filha.
– Bom dia, mãe – cumprimentou satisfeita.

Zilda tinha agora cinqüenta e três anos. Estava quase se aposentando, mas gostava de trabalhar. Levantar todas as manhãs e pegar o ônibus até o prédio do Ministério Público lhe dava uma confortável sensação de utilidade. Fazia a diferença, ela sabia.
Terminado o café foi se trocar. Chegaria mais cedo hoje. Talvez caminhasse um pouco pela praça em frente ao escritório, aproveitando o ar fresco da manhã antes de entrar para o trabalho.
Ainda eram sete e vinte quando a porta se fechou e Zilda ganhou a calçada rumo ao ônibus, distante apenas dois quarteirões de sua casa. Desceu as escadas, caminhou, atravessou a roleta, esperou por um instante até que seu trem chegasse. Entrou. Sentou-se em um dos vários lugares vazios à janela. Ainda se lembrava da gostosa sensação que a visão do relógio lhe causara ao acordar. Sentia-o firme em seu braço e isso, de alguma forma, dava-lhe conforto, segurança.
O ônibus parou, ainda não era a sua estação. Várias pessoas entraram. Um homem veio e se assentou bem ao seu lado. Zilda permaneceu observando a janela. Estava deslumbrada com seus próprios sentimentos. Por reflexo olhou para o braço do relógio. Onde estava o relógio? Sua cabeça girou. Não podia, não havia como desaparecer. Estava ali há um minuto. Zilda levantou os olhos e deu de cara com o homem que se sentara ao seu lado. Ele sorriu satisfeito e virou o rosto para frente. Zilda, ainda sem entender, olhou para o braço do homem. Lá estava... O relógio, no braço do homem, de um desconhecido. Como podia? Como ele fez aquilo?
Furiosa, Zilda tinha de agir rápido ou o perderia para sempre. Em poucos segundos o ônibus alcançaria uma nova estação e o homem desapareceria com seu relógio no pulso, como se fosse dele, como se nada houvesse acontecido. Ela olhou para a bolsa, olhou novamente para o homem. Calmamente, sorriu. Ele sorriu de volta. Zilda Abriu a bolsa e encaixou a mão em seu interior. Com a mão lá dentro, rígida, fazendo como que uma ponta, encostou a bolsa nas constelas do homem e disse num sussurro:

– Passa o relógio ou eu lhe dou um tiro.
– O homem se virou assustado. Seu rosto empalidecera de imediato. Nos olhos via-se o pavor crescendo.
Zilda cutucou com a ponta da “arma” as costelas do homem. Ele precisava de um incentivo, pensava ela.
– Passe logo! – Sussurrou um pouco mais alto.
Ele iria aprender. Não podia simplesmente sentar-se ali e levar um relógio, aquele relógio, impunemente.
O homem arrancou o relógio do pulso e entregou em silêncio para Zilda. Seu constrangimento era notório. O golpe não havia funcionado daquela vez. A velhinha indefesa estava armada.
Mal o ônibus parou na estação o homem se atirou para fora. Zilda ainda pôde ver seus olhos azuis assustados enquanto o ônibus se afastava. Ela sorriu. Acenou para o homem. Aquele ladrão, na certa, pensaria duas vezes antes de aplicar seu golpe novamente, pensava Zilda, feliz por ter tido tanta coragem.
De noite, ainda eufórica, após contar para todos no departamento seu feito incrível. Após ser aplaudida pelas amigas, chegou em casa ansiosa para contar à mãe. Dona Cléia olhava com olhos arregalados a filha eufórica, só conseguindo forças para falar depois de quase cinco minutos de narrativa entusiástica:

– Então, foi isso, mãe. Aquele bandido vai pensar duas vezes antes de furtar o relógio de mais alguém – concluiu Zilda, sentando-se a mesa com uma torrada na mão, cansada de narrar o ocorrido.
– Mas... Minha filha – falou a mãe, com olhos estatelados, – você esqueceu o relógio em cima da geladeira.
Zilda olhou para cima. Lá estava ele. E, em seu braço, havia outro, o relógio roubado.


AUTOR: Sávio Damato

JOGOS

ELA: morena; 1,60; magra; cabelos longos; olhos castanhos; sempre cheirosa, carinhosa...

ELE: Claro; 1,75; 65kg, olhos castanhos; pensador...

A primeira vez foi na casa dele, no segundo encontro. Haviam combinado de ir a uma Cervejaria, mas no meio do caminho veio o convite:

─ Tenho vinho em casa! É caminho... O que acha?

─ Pode ser...

Ela concordou. Por que não? “Já estavam ali, de mãos dadas, os dois querendo... O bar, mero pretexto. ─ sabiam ambos.

Subiram.

Ela pediu banheiro. Ele abriu o vinho. Trouxe a música. O clima estava feito. Mal saiu do banheiro e os dois se atracaram, jogando-se na cama, com as taças cheias de vinho e desejo. SEXO. Agora era só o que importava. O mundo se dissolvia em cheiros, toques, suspiros, sabores dos corpos em ebulição. Entre um gozo e outro, um gole no vinho, um trago no fumo. Corpos nus, exaustos... As mãos deslizavam dos seios às pernas... Ela, de costas, provocava com os quadris. “Onde está a camisinha?” E tudo recomeça. A noite não terminaria antes das duas da tarde.

Uma semana se passou.

“Não gosto de camisinha”, reclama ele.

“Sem camisinha não dá!”, responde ela.

Curvas convidativas o hipnotizam. “Não vale a pena brigar por isso agora. Quero mais”...

Mais tarde ele insiste. O cheiro do sexo enlouquece.

─ Sem camisinha não ─ persiste ela.

─ Por que não? Com camisinha é que não dá! ─ Ele sentencia.

─ Não dá ─ ela insiste.

─ Então não dá! Não confio em mulheres que não transam sem camisinha! ─ diz ele, dando a última cartada.

Silêncio.

A música termina.

─ Por que não confia em quem não transa sem camisinha? ─ ela questiona, triste, afetada.

─ Você sabe por que ─ responde ele, testando.

─ Me diz!

─ Não preciso. Você é inteligente o bastante para entender.

Ele coloca um filme. Ascende outro cigarro.

Ela, nua na cama, atravessa as paredes com seu olhar. Por onde andaria sua mente agora?

Uma hora de silêncio preenchido pela TV. O que dizer?

Ela levanta. Veste-se.

Ele finge não ver.

─ O que está fazendo? ─ pergunta ele, em tom ocasional.

─ Vou embora! Já que não confia em mim, vou embora! ─ responde ela, tímida.

─ Sabe que não é isso. Sabe bem... Se não quer sem camisinha é porque não confia em mim! Tem medo de pegar alguma doença? Ou...

─ Ou o quê?

..

─ Ou é você que está doente?

Ela chora.

Ele sente o calafrio cortar a espinha, arrepiar os pêlos do braço. Ela tinha alguma doença!

...

─ Eu não sou confiável?! ─ ela pergunta.

Seus olhos viam outra paisagem agora. Não se poderia dizer se dizia o que dizia para ele ou para uma platéia invisível de fantasmas que assombravam sua alma.

─ Eu não sou confiável... ─ repetiu .... ─ Você sabe o que é herpes?

─ Não ─ ele respondeu, aflito (Era bom demais para ser verdade. Tinha que ter alguma coisa).

─ Você não sabe o que é confiar numa pessoa. No primeiro namorado. E depois descobrir que ele te passou isso. Não sabe o quanto sofri. Depois disso, meus relacionamentos sempre terminam neste ponto. “Na camisinha”. Eu não sou confiável! ─ repete ela, transtornada.

Ele observa. No escuro, só as silhuetas podem ser vistas. O rosto dela, em meio às sombras e os delírios do álcool se metarfoseava em formas assombrosas.

─ Eu gosto de sexo ─ Ela disse.

─ E quem não gosta? ─ Ele responde, constrangido. (O que estou fazendo aqui ─ pensa.) ─ O que isso causa?

─ Dor! Muita dor. ─ Ela responde, ente dentes, entre lágrimas, raiva e dor. ─ Sabe aquelas feridas que algumas pessoas têm na boca? É isso, só que aqui! Feridas, bolhas. Doe, coça!

Silêncio.

─ Por que me contou?

─ Normalmente, desapareço. Esse é o comportamento padrão. Quando chega a este ponto eu simplesmente vou embora e você nunca mais sabe de mim. Mas eu gostei de você. Gostei desde o primeiro dia...

Carência...

─ Te amo! ─ Diz ela.

─ Desculpe! ─ Ele responde.

─ Acharia justo se não contasse? Eu seria mais confiável?

─ Eu quis jogar! Quando se está em uma roleta russa sabe-se o risco que corre. Eu quis arriscar. Seria justo se me contaminasse. O risco era de nós dois. Também posso ter alguma coisa. Por que não? Hoje eu não sei, mas há anos não faço exames. Posso ter! É o risco que escolhemos correr. Faz parte do jogo.

─ Eu não faria isso com ninguém.

─ É por isso que todo mundo transa sem camisinha.

─ Parece que tenho uma estrela na testa.

.

. ─ Preciso pensar ─ Ele diz, rezando para que ela se vá. Que o pesadelo acabe logo.

Não vou ser herói. Nunca gostei dela tanto assim... ─ Ele pensa, enquanto fecha a porta do elevador.

O jogo não pode parar!



AUTOR: Sávio Damato

Balada do amor através das idades

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar meu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catatumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria do meu bergantim.

Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal…
Me suicidei também.


Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira…
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.


(Drummond)

A menina e o anjo

Anjos, criaturas de essência mitológica, etérea, de sonhos. Seres alados, assexuados, com corpo humano e asas brancas semelhantes às dos pássaros. Segundo o dicionário, um ser espiritual que serve de mensageiro entre Deus e os homens.

Neste mundo de caos, é difícil entender a concepção de um ser maravilhoso que, com suas asas, voe sobre os problemas humanos sem sujar as penas branquinhas.

Se um dia, algum humano, digamos uma menininha, chegasse a encontrar com um anjo, tão distante que eles se encontram de nós, imagino que o diálogo seria mais ou menos assim:

– Olá, quem é você ? – perguntaria a menina.

– Sou um anjo – responde solícito, estufando as orgulhosas plumas.

– Um anjo? – admira-se a menina. – Mas, anjos não existem!

– Existem sim. Tanto sim que estou aqui, bem diante seus olhos.

– Mas... Posso estar apenas sonhando. Aí, quando acordar, você não vai mais existir.

– Nem por isso serei menos anjo.

– É verdade – concordou a menina, insegura. – Se é mesmo um anjo, não deixaria de ser por que acordei.

– Viu só?

– Mas, mesmo assim eu não acredito em anjos – falou a menina, decidida.

– Ora, mais quem afinal é você, criaturinha tão descrente? – disse o anjo, incomodado.

– Eu sou uma menina humana.

– Uma criança?

– Sim.

– Desculpe, mas eu não acredito em crianças. Elas não existem!


AUTOR: Sávio Damato