15/04/2009

ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA

Zilda acordara bem cedo na manhã daquela quinta-feira. Estava um dia nublado, um leve frio. Perfeito para permanecer debaixo das cobertas. Desligou o despertador e olhou para o relógio de pulso colocado sobre o criado, ao lado da cama. Sorriu. Aquela era uma relíquia de família, sua avó repassara-o para sua mãe e agora era de Zilda. Quantas boas lembranças um objeto tão simples pode nos trazer, pensava ela, ainda admirando o relógio. Cinco minutos se passaram. Zilda espreguiçou novamente. Hora de levantar. Lavou o rosto, pegou o relógio e foi para a cozinha tomar café. Como de costume, preparou pão, queijo, presunto e ovo frito, acompanhados de suco de laranja sem açúcar.

– Bom dia, minha filha.
– Bom dia, mãe – cumprimentou satisfeita.

Zilda tinha agora cinqüenta e três anos. Estava quase se aposentando, mas gostava de trabalhar. Levantar todas as manhãs e pegar o ônibus até o prédio do Ministério Público lhe dava uma confortável sensação de utilidade. Fazia a diferença, ela sabia.
Terminado o café foi se trocar. Chegaria mais cedo hoje. Talvez caminhasse um pouco pela praça em frente ao escritório, aproveitando o ar fresco da manhã antes de entrar para o trabalho.
Ainda eram sete e vinte quando a porta se fechou e Zilda ganhou a calçada rumo ao ônibus, distante apenas dois quarteirões de sua casa. Desceu as escadas, caminhou, atravessou a roleta, esperou por um instante até que seu trem chegasse. Entrou. Sentou-se em um dos vários lugares vazios à janela. Ainda se lembrava da gostosa sensação que a visão do relógio lhe causara ao acordar. Sentia-o firme em seu braço e isso, de alguma forma, dava-lhe conforto, segurança.
O ônibus parou, ainda não era a sua estação. Várias pessoas entraram. Um homem veio e se assentou bem ao seu lado. Zilda permaneceu observando a janela. Estava deslumbrada com seus próprios sentimentos. Por reflexo olhou para o braço do relógio. Onde estava o relógio? Sua cabeça girou. Não podia, não havia como desaparecer. Estava ali há um minuto. Zilda levantou os olhos e deu de cara com o homem que se sentara ao seu lado. Ele sorriu satisfeito e virou o rosto para frente. Zilda, ainda sem entender, olhou para o braço do homem. Lá estava... O relógio, no braço do homem, de um desconhecido. Como podia? Como ele fez aquilo?
Furiosa, Zilda tinha de agir rápido ou o perderia para sempre. Em poucos segundos o ônibus alcançaria uma nova estação e o homem desapareceria com seu relógio no pulso, como se fosse dele, como se nada houvesse acontecido. Ela olhou para a bolsa, olhou novamente para o homem. Calmamente, sorriu. Ele sorriu de volta. Zilda Abriu a bolsa e encaixou a mão em seu interior. Com a mão lá dentro, rígida, fazendo como que uma ponta, encostou a bolsa nas constelas do homem e disse num sussurro:

– Passa o relógio ou eu lhe dou um tiro.
– O homem se virou assustado. Seu rosto empalidecera de imediato. Nos olhos via-se o pavor crescendo.
Zilda cutucou com a ponta da “arma” as costelas do homem. Ele precisava de um incentivo, pensava ela.
– Passe logo! – Sussurrou um pouco mais alto.
Ele iria aprender. Não podia simplesmente sentar-se ali e levar um relógio, aquele relógio, impunemente.
O homem arrancou o relógio do pulso e entregou em silêncio para Zilda. Seu constrangimento era notório. O golpe não havia funcionado daquela vez. A velhinha indefesa estava armada.
Mal o ônibus parou na estação o homem se atirou para fora. Zilda ainda pôde ver seus olhos azuis assustados enquanto o ônibus se afastava. Ela sorriu. Acenou para o homem. Aquele ladrão, na certa, pensaria duas vezes antes de aplicar seu golpe novamente, pensava Zilda, feliz por ter tido tanta coragem.
De noite, ainda eufórica, após contar para todos no departamento seu feito incrível. Após ser aplaudida pelas amigas, chegou em casa ansiosa para contar à mãe. Dona Cléia olhava com olhos arregalados a filha eufórica, só conseguindo forças para falar depois de quase cinco minutos de narrativa entusiástica:

– Então, foi isso, mãe. Aquele bandido vai pensar duas vezes antes de furtar o relógio de mais alguém – concluiu Zilda, sentando-se a mesa com uma torrada na mão, cansada de narrar o ocorrido.
– Mas... Minha filha – falou a mãe, com olhos estatelados, – você esqueceu o relógio em cima da geladeira.
Zilda olhou para cima. Lá estava ele. E, em seu braço, havia outro, o relógio roubado.


AUTOR: Sávio Damato

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